24 janeiro 2013


Em 2013 comemora-se o centenário do poeta e compositor Vinícius de Moraes. Conhecido mais como poeta do que como qualquer outra modalidade artística, Vinícius também é autor de inesquecíveis canções e de importantes crônicas como Operários em Construção, parte integrante de um dos meus trabalhos da Especialização em Língua Portuguesa na UFMG. Embora seu nome apareça como Vinícius de Morais, a grafia correta, que é a de registro, é Vinícius de Moraes.

Sua trajetória, conhecida pela poesia e pela música, não deixaram de marcar sua vida boêmia e seus vários matrimônios que inspiraram grandes poemas sobre o amor e sobre a própria vida. Na crônica, ele se destaca pela capacidade de captar paisagens externas com originalidade e exatidão. Na narrativa Operários em Construção, o artista relaciona a edificação com o sentido da criação, simbolizando vida no espaço concreto, em que a dureza material é quebrada pela forma poética com que são erguidos o edifício e a escrita.
A riqueza metafórica vem acompanhada de uma outra riqueza: a linguagem metonímica com que são destacados os personagens operários, que são " homens de cor cinza " e muito mais do que cinza, são contemplados diariamente, numa sequência linear, como protagonistas em suas poses escultórias.
 
Na poesia, o destaque vai para os sonetos, que lhe conferiram o título de um dos maiores sonetistas da Literatura Brasileira. As composições, que vieram em parcerias honradas com Baden Powell, Toquinho, Tom Jobim, Carlos Lyra e Ari Barroso, servem de destaque na MPB e ainda, a literatura infantil por ele desenvolvida, que se torna peça fundamental para a contemplação da memória mutifacetada do artista.

Acompanhe, durante o ano de 2013, as principais composições de Vinícius.
                       Grande abraço de boas-vindas da professora Marília.

Operários em construção

Às vezes, enquanto trabalho em casa, na minha máquina, e busco no abstrato da paisagem urbana a forma do que quero dizer, acabo esquecendo de tudo para fixar minha atenção sobre os operários que terminam o edifício em frente. Chegaram agora à fase em que só falta pintar as esquadrias e dar caiação final no primeiro andar. Venho, há meses, observando-os trabalhar, erguer a sólida estrutura de oito pisos, com três apartamentos por andar. Vi-os situar as fundações, levantar o cipoal de aço e cimento que era como o esqueleto do prédio. Vi-os colocar-lhe os soalhos, enquadrar-lhe as portas e janelas, revesti-lo de sua epiderme intensa de tijolos refratários. Fui espectador emocionado de suas perigosas passagens para a prancha móvel, à guisa de elevador, sobre a área mínima da qual suspendiam-se para rebocar e caiar os grandes muros externos laterais da construção paciente e imóvel. Juro que ouvia tambores surdos, como antes do número de sensação ao trapézio volante de um circo, cada vez que um daqueles homens cor de cimento fazia arriscadíssima passagem da janela para a prancha estreita presa a roldanas colocadas no alto do edifício. Admirei-os em suas displicentes poses escultóricas, mãos na cintura sobre a tábua balouçante, indiferentes à sucção do abismo aberto em espirais de morte sob seus pés. A um vi fazer pipi lá para baixo, num perfeito à-vontade, provocando-me necessidade idêntica, ai de mim, fruto de uma reação de meu vago-simpático (pois que sofro de vertigem das alturas). À noite, ouvi-os cantar, no barracão que levantaram no pátio dos fundos, enquanto o fogo de sua cozinha rústica crepitava no escuro e seus violões ponteavam bordões dolentes. Apreciei-os brincar e brigar, passarem-se objetos, jogando-os com incrivel precisão, discutir problemas de construção e lances de futebol e receber empregadas da vizinhança com as quais se internavam prédio adentro: e que alegres voltavam desses rápidos seqüestros! 
Agora a estrutura se erige - mais um apartamento na colmeia em torno - e os operários esticam seu labor na preguiça dos retoques finais. Ergueram o prédio. Cumpriram seu dever. Criaram com suas mãos o plano de um arquiteto. Deram vida ao espaço. E em verdade eu vos digo que é justo o lazer que ora se permitem, pois multiplicaram uma só unidade residencial em muitas, capazes de abrigar as alegrias, tristezas, amores e lutas de outros tantos homens. E, fazendo-o, fizeram trabalho de homem.
                                                                                                                  Setembro de 1953

Rio de Janeiro: Ed. Nova aguilar, 1986.Vinícius de Moaes. Poesia Completa e Prosa