LÍNGUA MATERNA, LÍNGUA PATERNA
Por MARCOS - 08/03/2013 às 22:48
LÍNGUA MATERNA, LÍNGUA PATERNA
O linguista Bernard Cerquiglini, em dois de seus livros sobre a história do francês, emprega a expressão língua paterna para se referir ao produto das políticas de normatização que incidem sobre as línguas de sociedades grafocêntricas, como as europeias. Evidentemente, língua paterna se contrapõe a língua materna, um conceito muito difundido e de uso amplo dentro e fora das discussões especializadas. Cerquiglini emprega muito esporadicamente a expressão nos livros citados, mas vale a pena desenvolvê-la um pouco mais aqui, porque me parece uma interessante polarização para entendermos as relações entre linguagem e sociedade.
A língua materna é precisamente a língua da mãe, a língua que cada pessoa começa a adquirir tão logo nasce e cria o vínculo afetivo-linguístico com a mãe (ou, na falta dela, com a pessoa que venha a preencher esse papel). É uma língua puramente oral — falada e ouvida —, mesmo quando provém da voz de uma pessoa altamente letrada. Língua do afeto, do desejo, do íntimo, do sonho, vive à margem dos ditames da norma canonizada. A língua materna é intrinsecamente variável, doméstica, familiar, idioma particular daquilo que em inglês se chama household, um termo que inclui a casa, seus ocupantes e todas as atividades ali desenvolvidas por eles. Quando, na história de cada sociedade, uma determinada língua — ou mais precisamente, uma das variedades dessa língua — é alçada à condição de língua oficial, ocorre uma importante metamorfose — a língua materna se torna língua paterna, transformada em padrão (do latim patronu-, onde está presente a raiz pater- ‘pai’, mesmo vocábulo do qual procedem patrão e patrono). É a língua patrocinada pelo Estado e, irradiando-se dele, a língua da escola — isso explica o choque que muitas pessoas (especialmente os falantes de variedades linguísticas estigmatizadas) experimentam ao tomar contato pela primeira vez com uma língua que, em boa medida, além de estranha é quase estrangeira. A língua paterna é essencialmente escrita, ortografizada, normatizada.
A língua paterna é a língua da Lei, sempre associada à figura do pai, inclusive nos postulados da psicanálise freudiana. A língua materna — língua de mulher — sofre na maioria das sociedades as mesmas depreciações dedicadas ao gênero feminino: é o lugar do “erro”, do “desvio”, do “frágil”, do pouco confiável, do instável, do inconvenientemente sensível e sensitivo. Ao pai cabe domar e domesticar esse idioma errático, conferindo-lhe regras, regimentos, registros, regências, regulamentos — palavras todas derivadas de rex, regis, ‘rei’, assim como recto, direcção, correcção, régua. É a língua do Direito (< derectu-, ‘o que está reto’), erigida como lei linguística. A língua paterna é a língua da erecção, a língua do rei, pai da nação, símbolo do Estado.
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