07 março 2012

O tempo não tem pontos fixos, o tempo é uma sombra que dá a volta na Terra. Ou a Terra é que dá voltas na sombra. Nossa única certeza é que será sempre a mesma sombra — o que não é uma certeza, é um terror.

Na nossa fome de coordenadas no tempo nos convencemos até que dias da semana têm características. Que uma terça-feira, por exemplo, não serve para nada. Que terça é o dia mais sem graça que existe, sem a gravidade de uma segunda — dia de remorso e decisões — e o peso da quarta, que centraliza a semana (pelo menos em Brasília), ou a concentração da quinta, ou a frivolidade da sexta. Gostaríamos que passar pelos dias fosse como passar por meridianos e paralelos, a evidência de estarmos indo numa direção, não entrando e saindo da mesma sombra. Não passando por cada domingo com a nítida impressão de que já estivemos aqui antes.

Já que não há coordenadas e pontos fixos no tempo, contentemo-nos com metáforas fáceis. O novo milênio se estende como um imenso pergaminho à nossa frente, esperando para ser preenchido. Podemos escolher nosso destino, desenhar nossos próprios meridianos e paralelos e prováveis novos mundos. É verdade que a passagem do tempo não se mede apenas pelo retorno dos domingos, também se mede pela degradação orgânica, e que a cada domingo estaremos mais perto daquela outra sombra, a que nunca acaba, suspiro e reticências. Nenhum de nós chegará muito longe no novo milênio. (Minha meta é chegar à Copa do Mundo de 2014, o que vier depois é gratificação.) Mas é bom saber que o novo milênio está aí, quase inteiro, à nossa espera.

Nada a ver — ou tudo a ver, sei lá — mas feliz era Adão, o primeiro homem. Não porque estava no jardim do Paraíso, com tudo em volta para saciar sua fome e sua sede, mas porque não sabia do tempo e da morte. Vivia num eterno presente, num eterno domingo. O que vinha depois da passagem da sombra da noite não era o dia seguinte, era o mesmo dia, ou até o dia anterior, quem se importava? Adão, sozinho no Paraíso, era um homem feliz porque era um homem sem datas. Mas quando Deus colocou Eva ao lado de Adão, a primeira coisa que ela perguntou, ainda úmida da criação, só para puxar assunto, foi: “Que dia é hoje?”, e ele sentiu que sua paz terminara. Ele era um homem no tempo. Um homem com um ontem e um amanhã, e um futuro estendido à sua frente como um imenso pergaminho, esperando para ser preenchido. O tempo não foi a única novidade trazida por Eva ao jardim do Paraíso. Foi ela que, dias depois, colheu o fruto proibido, que os tornou, de uma só mordida, sexuais e mortais. E foi depois de comer o fruto proibido, quando a Terra entrou na sombra da noite e os dois se deitaram lado a lado, que Adão sentiu seu membro, que ele pensara que fosse só para fazer xixi, se mexer. E avisou a Eva:
— É melhor chegar para trás porque eu não sei até onde este negócio cresce.
Depois de ganhar uma mulher e descobrir o tempo e sua mortalidade, Adão descobriu seu próprio corpo. Que semana!


Trecho de Em Algum Lugar do Paraíso, de Luis Fernando Verissimo


Em algum lugar do paraíso
Lançamento do livro de Luis Fernando Verissimo, foi terça-feira, 6 de março, às 19h30, na Academia Mineira de Letras. Boa indicação de leitura. A publicação reúne 41 crônicas selecionadas entre mais de 350 publicadas na coluna de Verissimo em jornais. De acordo com o cronista, a escolha foi feita pela editora, com algumas sugestões dele.
“Entram, geralmente, as mais humorísticas, com mais recurso à ficção”, diz o escritor. Ele conta ainda que a maioria foi publicada nos últimos três anos.
Como sempre uma boa dica aos bons leitores do Joia Rara !