28 fevereiro 2014



Ela está de volta. Com seus incompletos 80 anos, mineira, de Divinópolis, a poetisa Adélia Prado deu o ar da graça no programa Sempre Um Papo, ontem, no teatro Sesi Minas. No lançamento, a autora cuida de explicar como reuniu 38 poemas, a partir dos versos dialógicos com Deus. São diálogos que compõem uma espécie de mistério e de religiosidade em que a poesia se comunica com a vida material e espiritual. 


 “Miserere”,  da expressão latina “Miserere nobis” (“Tende piedade de nós”), da liturgia católica, já usada por Adélia em 1978 (‘Miserere’ já tinha sido o título de um poema do livro ‘Terra de Santa Cruz’, de 1981):
 “Eu desenhava no papel de seda uma flor de cinco pétalas…”, uma volta ao ciclo poético da autora, envolvendo a relação do corpo, enquanto matéria, com a própria experiência religiosa. 

Não é a primeira vez que eu a vejo tão de perto, mas a sensibilidade e o encantamento diante da  rainha dos versos, que inspiram e que seduzem diferentes leitores, parece-me algo sempre inédito. 
 “A alma se desespera, / mas o corpo é humilde; / ainda que demore, / mesmo que não coma, / dorme.”



Ainda com a mesma graça, ela versifica a alma feminina, a fragilidade da mulher no mesmo diálogo com Deus. 

“Eu sou uma mulher sem nenhum mel / eu não tenho um colírio nem um chá / tento a rosa de seda sobre o muro / minha raiz comendo esterco e chão. Quero a macia flor desabrochada / irado polvo cego é meu carinho. / Eu quero ser chamada rosa e flor / eu vou gerar um cacto sem espinho.”

Surpreendente noite de poesia. O livro promete outros diálogos. Comecei a leitura. Uma maneira de encontrar-me no carnaval: encontro-me, antes, com a poesia de Adélia Prado.

                                Professora Marília Mendes


Senha

Eu sou uma mulher sem nenhum mel
eu não tenho um colírio nem um chá
tento a rosa de seda sobre o muro
minha raiz comendo esterco e chão.
Quero a macia flor desabrochada
irado polvo cego é meu carinho.
Eu quero ser chamada rosa e flor
Eu vou gerar um cacto sem espinho.


Humano

A alma se desespera,
mas o corpo é humilde;
ainda que demore,
mesmo que não coma,
dorme.


Jó consolado

Desperta, corpo cansado;
louva com tua boca a cicatriz perfeita,
o fígado autolimpante,
a excelsa vida.
Louva com tua língua de argila,
coisa miserável e eterna,
louva, sangue impuro e arrogante,
sabes que te amo; louva, portanto.
A sorte que te espera
paga toda vergonha,
toda dor de ser homem.


Contramor

O amor tomava a carne das horas
e sentava-se entre nós.
Era ele mesmo a cadeira, o ar, o tom da voz:
Você gosta mesmo de mim?
Entre pergunta e resposta, vi o dedo,
o meu, este que, dentro de minha mãe,
a expensas dela formou-se
e sem ter aonde ir fica comigo,
serviçal e carente.
Onde estás agora?
Sou-lhe tão grata, mãe,
sinto tanta saudade da senhora…
Fiz-lhe uma pergunta simples, disse o noivo.
Por que esse choro agora?