Na perspectiva de uma tensão dialógica, como faz Chico Buarque em grandes letras, no último CD, ele explora as súplicas de um escravo na composição Sinhá, diante do senhor de engenho, tentando provar a sua inocência.
Jurando não ter visto Sinhá, banhando-se nua no açude, o escravo pretende se livrar do tronco, seu pior castigo, e ainda se justifica, como livre de qualquer cobiça e privado de enxergar bem. Ao que parece, ele quer convencer o senhor, seu principal interlocutor na letra, de que não se interessa mais por mulher, dada a ausência da cobiça.
Se a dona se banhou
Eu não estava lá
Por Deus Nosso Senhor
Eu não olhei Sinhá
Estava lá na roça
Sou de olhar ninguém
Não tenho mais cobiça
Nem enxergo bem.
Ele argumenta com o senhor de engenho a falta de motivos para ir ao tronco e para ser aleijado. No discurso em que jura não ter visto a Sinhazinha, ele afirma que ela o faz mal com " olhos tão azuis " e ainda se benze com o sinal da cruz.
A composição retrata um período da história do Brasil, marcado pelas práticas sociais escravocratas, sendo o negro, definido como mercadoria. O posto mais elevado na complexa sociedade açucareira cabia ao senhor de engenho. O serviço escravo era supervisionado pelos feitores,
que tinham a tarefa de vigiar os escravos e aplicar punições que
iam desde a palmatória até o tronco.
Temeroso da penalidade máxima, o escravo isenta-se da culpa, ao admitir que estava atrás da sabiá, o que o leva ao açude. No verso seguinte, ele ainda reitera a ideia de não ter visto a moça, já que quando ela se despiu, ele já se encontrava longe. Estava no moinho.
Para que me pôr no tronco
Para que me aleijar
Eu juro a vosmecê
Que nunca vi Sinhá
Por que me faz tão mal
Com olhos tão azuis
Me benzo com o sinal
Da santa cruz
Eu só cheguei no açude
Atrás da sabiá
Olhava o arvoredo
Eu não olhei Sinhá
Se a dona se despiu
Eu já andava além
Estava na moenda
Estava para XerémPor que talhar meu corpo
Eu não olhei Sinhá.
Vosmincê e vassuncê fazem parte das modificações do pronome de tratamento que, ao longo da história, foram se degradando e que por contração da locução substantiva " Vossa Mercê ", deu na forma " vosmincê", que é forma nasalada de "vosmecê".
O suplício do escravo o faz chorar em iorubá, ou seja, ele clama na língua africana, simbolizando a família linguística de que faz parte. Os iorubás deixaram uma presença importante no Brasil, em especial, na Bahia. Os nagôs (iorubás) têm grandes influências no estado, no que ele encerra a canção no Pelourinho, enquanto cenário da herança da etnia afrodescendente, na confirmação do
" herdeiro sarará ", ou seja, o resultado do cruzamento das etnias.
Contudo, ainda ao retomar particularidades da cultura e da religião dessa herança, ele subentende a ideia de que a sinhazinha se apaixona pelo escravo, o que nos leva a pensar que, além de se colocar como inocente na história, ele ainda culpa a Sinhazinha por deixar-se seduzir pela figura do negro, enfeitiçada pela magia da etnia africana. Ele é o escravo, na condição de filho bastardo do senhor de engenho.
Meus olhos vai furar
Eu choro em iorubá
Mas oro por Jesus
Para que que vassuncê
Me tira a luz
E assim vai se encerrar
O conto de um cantor
Com voz do pelourinho
E ares de senhor
Cantor atormentado
Herdeiro sarará
Do nome e do renome
De um feroz senhor de engenho
E das mandingas de um escravo
Que no engenho enfeitiçou Sinhá.
Chico Buarque inova mais uma vez com letras ricas e expressivas. A função poética evidencia a história do escravo e do seu senhor, evocando imagens e produzindo efeitos. Há a presença de rimas que elucidam o tom lamuriento da tristeza do escravo. Ninguém melhor que o " nosso" velho e novo Chico para interpretar nesse misto de história e poesia, a diversidade cultural do nosso país.
Professora Marília Mendes