O LEITOR ÍNTIMO
Depois de quatro anos atuando como jornalista na internet,
resolvi colocar no papel algumas reflexões e sentimentos sobre o impacto
que esta nova especialidade está produzindo no meu ofício. Resultou
deste esforço a série Tipos de Leitor, que comecei a publicar em março.
Muita gente criticou a série, por enxergar nos textos uma tentativa
de desqualificar os leitores que comentam o meu trabalho. Lamento dizer
que é exatamente o oposto. O que me move é justamente o fascínio pela
nova forma de relação entre jornalista e leitor promovida pelo meio (a
internet) que mudou a forma de se fazer jornalismo.
Uma
imagem que sempre me orientou no trabalho, ouvida quando ainda escrevia
numa Remington, é que o primeiro parágrafo de qualquer texto deveria
produzir no leitor o impacto que alguém sente, numa briga, ao ser
agarrado pelo colarinho da camisa e levantado do chão.
Procuro até hoje não perder de vista esta imagem, e sigo tentanto
agarrar o leitor pela camisa, mas agora, ao mesmo tempo, também enxergo
outra. Desde que passei a publicar na internet, escrevo pensando que o
leitor, a qualquer momento, sairá de dentro da tela do computador, me
agarrará pela camisa e me fará perguntas e críticas. “Por que você
escreveu isso?” “O que quis dizer?” “Viu o erro que cometeu?” E por aí
vai…
Já é lugar comum falar deste impacto – a presença do leitor – no
trabalho do jornalista, a diferença entre receber uma ou duas cartas por
causa de um texto e hoje ver 300 comentários por conta de outro. Não
vou me estender sobre isso.
Menos discutido, creio, é a ilusão de proximidade que este leitor
sente. Assim como eu o enxergo saindo da tela para me interpelar, ele
também se imagina na mesma situação, entrando no meu escritório para
conversar, discutir e contestar os meus textos. E, pior, ele supõe estar
estabelecendo uma relação de intimidade com o autor.
Vou dar dois exemplos recentes que reforçam este meu ponto de vista.
Gosto de acompanhar os comentários da atriz Luana Piovani no Twitter.
Ela é desbocada, engraçada e, muitas vezes, incompreensível. Sempre me
divirto com o que ela escreve e, eventualmente, reproduzo. Uma leitora
reclamou: “Vou deixar de seguir @mauriciostycer porque ele dá RT na
Piovanta! Pior que tem meia dúzia de jornalistas que se dizem sérios
como o @mauriciostycer que fazem questão de dar RT nas merdas da
PIOVANTA.” É evidente a decepção da leitora comigo. Na imagem dela, são
coisas incompatíveis um “jornalista sério”, como supostamente eu seria,
gostar do que Luana Piovani escreve.
A Globo exibiu no domingo o Festival Promessas, um evento destinado a
cantores gospel. Foi, tudo indica, um gesto de aproximação com
evangélicos. Li muitos textos a esse respeito, inclusive no UOL,
e não vi motivos para tratar do assunto no meu blog. Posso ter feito
uma avaliação errada, mas para os leitores que me inundaram de
mensagens, cobrando um texto a respeito, a razão é outra: “Me contaram
que você é evangélico, não sabia. Então deve ter vibrado com o Festival
Gospel da Rede Globo, tá explicado”.
Os
dois casos mostram reações de pessoas que parecem acreditar na ilusão
de que me conhecem e entendem tanto quanto eu do meu trabalho. Parecem
achar, de fato, que entram pela tela do computador e me vêem.
É preciso aprender a lidar com esta expectativa, mas isso não
significa se render a ela. Aprendo demais com os leitores, leio tudo que
me escrevem, levo muito em consideração o que dizem e publico todos os
comentários que me ofendem, excluindo apenas os que possam configurar
crime.
Continuo tentando entendê-los, motivo pelo qual não vou parar com a série Tipos de Leitor.
Aceito, por isso, em contrapartida, que o leitor me rotule como quiser.
Só espero que ele tenha, como eu tenho, humildade de reconhecer que
ainda não nos conhecemos o suficiente.
(No cartoon acima, publicado na revista “New Yorker”, um cão diz ao outro: “Na internet, ninguém sabe que você é um cachorro”)
O LEITOR DOS SONHOS
O Leitor dos Sonhos não lê apenas o título, mas todo o texto, antes de comentar.
Critica, protesta, reclama, até xinga o blogueiro, mas sempre apresenta argumentos.
Corrige lapsos, aponta contradições.
Sugere, acrescenta, aponta alternativas ao ponto de vista do blogueiro.
O Leitor dos Sonhos recomenda a leitura do blog a outros leitores mesmo quando discorda.
Nas redes sociais, discute, pergunta, comenta, faz piadas. Diverge,
explica, defende suas ideias. Provoca. Interpreta. Confunde, causa
confusão.
O Leitor dos Sonhos leva o blogueiro a pensar, eventualmente a mudar de opinião ou a rever conceitos.
Nunca está satisfeito. Vê pelo em ovo, se decepciona com as posições
do autor, cobra posturas diferentes, ameaça abandoná-lo, mas nunca deixa
de dar o seu palpite.
Eventualmente não fala nada, mas dá ao blogueiro a honra da sua companhia neste blog.
O Leitor dos Sonhos acompanhou esta série e, identificando-se ou não
com os tipos aqui descritos, entendeu que se tratava de uma homenagem a
todos que ainda que se dispõem a ler.
O Leitor dos Sonhos existe aos montes e é por causa deles, e para eles, que sigo escrevendo.
PS: Com este texto, encerro, ao menos por ora, a série Tipos de Leitor, que pode ser lida aqui ou, na lateral direita do blog, em Categorias, no último item incluído.
O PROFESSOR PASQUALE
Todo mundo conhece bem este tipo, presente em qualquer blog e
no Twitter. Não importa o assunto. O importante é a discussão estar
quente. É quando ele aparece para, com alguma superioridade, observar:
“Como é que vocês querem discutir política se não sabem escrever
português corretamente?” Ou: “Aprendam primeiro a escrever EXCEÇÃO antes
de opinar”. Ou ainda: “Não é DESCORDAR e sim DISCORDAR. Maldita
inclusão digital!”
De fato, a caixa de comentários dos blogs é um terreno fértil para
identificar problemas recorrentes no uso da língua portuguesa. O que me
incomoda no Professor Pasquale não é esta sua preocupação com a
gramática e a ortografia, legítima, por sinal, mas o tom de
superioridade e arrogância que muitas vezes adota.
Há maneiras e maneiras de corrigir publicamente os erros alheios. Já
escrevi uma vez sobre este episódio, mas não custa repetir. É um belo
exemplo, na minha opinião, sobre como agir com cordialidade em casos de
erros de português em espaços públicos. Deu-se no final de 2007, se não
me engano.
A ESPN Brasil exibia o “Bate-bola – segunda edição”. O apresentador
João Carlos Albuquerque informou que Kaká havia acabado de ser premiado
com a Bola de Ouro, o tradicional prêmio concedido pela revista “France
Football” ao melhor jogador do ano. O programa então mostrou uma
entrevista gravada com o jogador, ao longo da qual Kaká falou da alegria
de ter sido escolhido e informou: “Esse prêmio vai para a minha sala de
TROFÉIS”.
A entrevista prosseguiu por mais alguns instantes até que a
transmissão voltou para o estúdio. Albuquerque tomou a palavra e falou
(cito de cabeça): “Esse é um programa assistido por muitos jovens.
Então, temos também uma função educativa. O plural de palavras
terminadas em ‘éu’ é sempre ‘éus’. Chapéus, troféus, réus e assim por
diante”.
Sem citar Kaká e o seu atentado gramatical, Albuquerque deu uma
grande lição, ao vivo – mostrando que um bom jornalista precisa ter
cultura e jogo de cintura, além de consciência sobre o seu papel num
país com tantas deficiências quanto o Brasil.
Cheguei a cogitar, quando comecei a escrever em blog, corrigir erros
crassos de leitores sem avisar. Mais do que o tempo que isso me
custaria, desisti da ideia por achar que seria uma interferência
indevida na comunicação.
É um tema complexo e delicado. No Twitter, cheguei a fazer algumas
observações públicas sobre erros cometidos por pessoas famosas. Não faço
mais. Percebi que muita gente se sentia ofendida pela correção de
mancadas alheias.
Em tempo: Sou amigo do professor Pasquale Cipro
Neto, que conheci na redação da “Folha” na década de 90 e reencontrei
inúmeras vezes, a última na Copa do Mundo de 2010, na África do Sul.
Acho o seu trabalho exemplar. Ao batizar um “tipo de leitor” com o seu
nome quis prestar uma homenagem a ele.
PS. Quem quiser ler os outros textos da série Tipos de Leitor basta clicar aqui ou, na lateral direita do blog, em Categorias, no último item incluído.
Disponível em < http://mauriciostycer.blogosfera.uol.com.br/tag/tipos-de-leitor/>