O tempo não tem pontos fixos, o tempo é uma sombra que dá a volta na Terra.
Ou a Terra é que dá voltas na sombra. Nossa única certeza é que será sempre a
mesma sombra — o que não é uma certeza, é um terror.
Na nossa fome de coordenadas no tempo nos convencemos até que dias da semana
têm características. Que uma terça-feira, por exemplo, não serve para
nada. Que terça é o dia mais sem graça que existe, sem a gravidade de uma segunda
— dia de remorso e decisões — e o peso da quarta, que centraliza a semana
(pelo menos em Brasília), ou a concentração da quinta, ou a frivolidade
da sexta. Gostaríamos que passar pelos dias fosse como passar por meridianos
e paralelos, a evidência de estarmos indo numa direção, não entrando e saindo
da mesma sombra. Não passando por cada domingo com a nítida impressão de
que já estivemos aqui antes.
Já que não há coordenadas e pontos fixos no tempo, contentemo-nos com metáforas
fáceis. O novo milênio se estende como um imenso pergaminho à nossa
frente, esperando para ser preenchido. Podemos escolher nosso destino, desenhar
nossos próprios meridianos e paralelos e prováveis novos mundos. É verdade
que a passagem do tempo não se mede apenas pelo retorno dos domingos,
também se mede pela degradação orgânica, e que a cada domingo estaremos
mais perto daquela outra sombra, a que nunca acaba, suspiro e reticências. Nenhum
de nós chegará muito longe no novo milênio. (Minha meta é chegar à
Copa do Mundo de 2014, o que vier depois é gratificação.) Mas é bom saber que
o novo milênio está aí, quase inteiro, à nossa espera.
Nada a ver — ou tudo a ver, sei lá — mas feliz era Adão, o
primeiro homem.
Não porque estava no jardim do Paraíso, com tudo em volta para
saciar sua
fome e sua sede, mas porque não sabia do tempo e da morte. Vivia
num eterno
presente, num eterno domingo. O que vinha depois da passagem da
sombra da
noite não era o dia seguinte, era o mesmo dia, ou até o dia
anterior, quem se
importava? Adão, sozinho no Paraíso, era um homem feliz porque era
um homem
sem datas. Mas quando Deus colocou Eva ao lado de Adão, a primeira
coisa que ela perguntou, ainda úmida da criação, só para puxar
assunto, foi:
“Que dia é hoje?”, e ele sentiu que sua paz terminara. Ele era um
homem no
tempo. Um homem com um ontem e um amanhã, e um futuro estendido à
sua
frente como um imenso pergaminho, esperando para ser preenchido. O
tempo não foi a única novidade trazida por Eva ao jardim do Paraíso.
Foi ela que, dias
depois, colheu o fruto proibido, que os tornou, de uma só mordida,
sexuais e
mortais. E foi depois de comer o fruto proibido, quando a Terra
entrou na sombra
da noite e os dois se deitaram lado a lado, que Adão sentiu seu
membro, que
ele pensara que fosse só para fazer xixi, se mexer. E avisou a
Eva:
— É melhor chegar para trás porque eu não sei até onde este negócio cresce.
Depois de ganhar uma mulher e descobrir o tempo e sua mortalidade, Adão
descobriu seu próprio corpo. Que semana!
Trecho de Em Algum Lugar do Paraíso, de Luis Fernando Verissimo
Em algum lugar do paraíso
Lançamento do
livro de Luis Fernando Verissimo, foi terça-feira, 6 de março, às 19h30, na
Academia Mineira de Letras. Boa indicação de leitura. A publicação reúne 41 crônicas selecionadas entre
mais de 350 publicadas na coluna de Verissimo em jornais.
De acordo com o cronista, a escolha foi feita pela editora, com algumas
sugestões dele.
Como sempre uma boa dica aos bons leitores do Joia Rara !“Entram, geralmente, as mais humorísticas, com mais recurso à ficção”, diz o escritor. Ele conta ainda que a maioria foi publicada nos últimos três anos.