19 setembro 2011

"Cantei um duo terníssimo, depois um trio, depois um quator ... "

São com essas palavras, que Bento Santigo compara a própria vida, truncado na teoria de um velho cantor. Não fossem as suspeitas de relações amorosas extraconjugais discutíveis, eu diria que a ópera de Bentinho estava mais para um trio. A ópera entre os centrais e os comprimários personagens desse enredo.

Assim caminha a narrativa de maior destaque entre as obras realistas de grande impacto na Literatura Brasileira. Em uma pequena sociedade, tipicamente interiorana, que tem na figura de Bentinho, um exemplo de amor fiel, desde a infância até o pós-seminário, tornando-o, finalmente, par romântico com Capitu, a personagem com olhos de ressaca, que mais tarde, viria a deixar suspeitas naquele amor, aparentemente tão imaculado..

Com foco narrativo de primeira pessoa, a obra toda é contada sob o julgo do protagonista Bentinho que, certamente, relata um texto de acordo com sua visão periférica acerca dos acontecimentos. Entenda periférico, neste contexto, como sendo uma visão limitada, sem muita elaboração por parte daquele que acredita nos fatos, ou seja, sem muitas justificativas.

A sociedade que inspira todo o enredo  é cortês, respeitosa e ostenta um estilo de vida comum para o gênero. No entanto, a ironia do autor, traço marcante na obra de Machado de Assis, rompe com a regularidade da sociedade plena, conforme os padrões do século XIX, em que a moral e os bons costumes já estavam há muito divididos em parcelas de crises sociais, porém não apresentadas de forma direta à população.A própria descrição dada a Capitu, sendo a dos olhos de ressaca, já comprovam um diferenciamento entre as mulheres com trajetórias lineares e a mulher que faz parte do romance.

Narrativa de memórias em que o narrador-personagem toma para si o controle da situação, dada a estabilidade conjugal, ainda que a convivência o faça doer pelas mãos do ciúme e das próprias suspeitas. Não se trata, no entanto, de uma história romântica e sim, realista, o que faz do enredo, com um final intrigante, sem um fechamento consistente e completo, o triunfo de Dom Casmurro. A ironia machadiana permite essa tragédia, a quebra da moral e dos bons costumes. O espaço geográfico , desde a simples Matacavalos, até a cidade, típico cenário fluminense, onde brota , cresce e prolifera a base dos contos machadianos, está o palco das transformações. Se em um primeiro momento, apenas o seminário viria a mudar o trajeto da história, fica claro para mim, que nos capítulos seguintes, com a interposição de outros personagens, que a geografia é mutável assim como o são suas figuras-tipo.

Sabe-se, por excelência, na obra, que o adultério não se confirma, que as suspeitas o acompanhariam eternamente e o que distingue Dom Casmurro das outras obras realistas, é justamente, a falta de precisão. No entanto, a característica mais acertada e que permite toda a riqueza da obra não está centrada em um romance que podia ter dado errado, mas na perspectiva de um protagonista do tempo em que se encaixa, convexo pelas suas atitudes e pelo amor a Capitu, na construção de outros temas que, inseridos na obra, permitem uma análise confrontante e profunda acerca de um par romântico que deu o que falar e sempre nos dará o ar da graça do seu entranhamento. Assim eu (re)vejo Dom Casmurro. Assim eu aprendi a conviver com a inquietude de Machado.
                              
Atendendo ao pedido de duas ex-alunas graciosas do Objetivo de Brasília,  que me mandaram um e-mail tão agradável e tão expressivo, boa semana a todos com Casmurro ! 
                                                           Beijo da professora Marília Mendes